A Dimensão Ontológica do Antropoceno: Pensamento Ameríndio e Algumas Ideias para Adiar o Fim do Mundo

From Firenze University Press Journal: Rivista Italiana di Filosofia Politica

University of Florence
4 min readJun 6, 2023

Juliana Neuenschwander-Magalhães, Universidade Federal do Rio de Janeiro

  1. Pressupostos ontológicos e epistemológicos na observação das narrativas do “fim do mundo

A imaginação sobre o fim do mundo acompanha a humanidade e varia de tempos em tempos. A cada virada de século ou de milênio o temor reaparece: a ira divina, uma grande enchente, terremotos, meteoros que se chocam com a Terra, pandemias ou a permanente ameaça de uma explosão nuclear invocam o fim do mundo. A observação antropológica permite concluir que há uma persistência da ideia do fim do mundo no tempo, como uma espécie de “variável comum” que persiste em diferentes culturas, com seus mitos, fabulações e narrativas sobre o fim dos tempos. Essa variável comum aproxima e, ao mesmo tempo, torna possível observar as profundas diferenças entre as narrativas do fim-do-mundo do Ocidente e a imaginação dos povos indígenas da Amazônia. Não se trata, aqui, nem de aplainar as profundas diferenças entre o mundo ocidental — europeu e ameríndio, nem de aprofundar uma “guerra ontológica” que já dura mais de 500 anos. Refiro-me à uma guerra que tem se dirigido não apenas aos corpos indígenas, mas sobretudo ao modo no qual eles existem e resistem, que diz respeito à abissal distância ontológica entre aqueles dois mundos.

Diferenças ontológicas não excluem a possibilidade de que haja uma coincidência no que diz respeito aos “encontros pragmáticos”, ou seja, aos encontros com o que existe. Assim, se ontologias e encontros pragmáticos não são separáveis, no sentido que os pressupostos ontológicos permitem interpretar os encontros pragmáticos, como ensina Almeida, interessa-me ver como diferentes ontologias podem confluir para a ideia comum de fim de mundo. Trata-se de assumir um “pluralismo ontológico radical”, para usar a expressão de Maniglier, que vai muito além do mero relativismo cultural, num “ontological turn” da Antropologia, que passa a buscar evi-denciar e comparar as diferenças ontológicas, ao invés de comparar cul-turas. Do ponto de vista sociológico, que aqui me interessa, esse ontologi-cal turn oferece a possibilidade de se observar a multiplicidade ontológica existente como socialmente construída, na medida em que a Antropologia oferece um “inventário das diferenças”5 que permite à Sociologia conhecer como as diferenças (ontológicas) produzem ulteriores diferenças (sociais). A ideia de fim de mundo está ligada à noção de desaparecimento do homem na Terra. O mundo terá terminado quando já não houver mais humanos nele. Esse é o paradoxo da afirmação de que o mundo vai aca-bar: quando ele for observável, já não será mais possível observá-lo. Nin-guém estará mais aqui para saber se a profecia se cumpriu. Isso porque o “fim do mundo” é um daqueles problemas que, para Kant, a razão não pode resolver, mas também não pode deixar de colocar para si mesma: “ela o faz necessariamente sob a forma de fabulação mítica, ou, como se gosta de dizer hoje em dia, de ‘narrativas’ que nos orientem e nos motivem.”

A ideia paradoxal do fim do mundo, portanto, sempre se expressou “melhor” na forma dos mitos, que suportam paradoxos e muitas vezes narram o fim como um novo começo. É importante ter presente que o mito tem um regime semiótico indiferente à verdade ou falsidade empírica de seus conteúdos. Esta paradoxal indiferença em relação ao regime do verdadeiro/falso, entretanto, não exclui a verdade dos mitos. Da mesma forma, não nega à ciência o valor de verdade com que ela assinala seus encontros com o existente. É possível, mediante a distinção entre “verdades metafísicas”, que se dirigem a domínios que estão além de qualquer experiência possível, e “verdades pragmáticas”, que dizem respeito a experiências possíveis, concluir que “um mesmo núcleo de verdades pragmáticas é compatível com múltiplas verdades metafísicas”, ou seja, “que múltiplos mundos metafísicos são compatíveis com as mesmas verdades pragmáticas, isto é, com a experiência.”

Isso significa tanto que ontologias são indispensáveis para a vida e para a ciência, quanto que diferentes ontologias, até mesmo aquelas em guerra declarada, podem ser compatíveis com as mesmas verdades pragmáticas. O “fim de mundo” será o “núcleo conceitual originário” a partir do qual irei observar a multiplicidade ontológica como “um complexo de diferenças”, desde o qual derivam e se multiplicam as diferenças9, não apenas ontológicas, mas também políticas. O desafio que aqui se coloca é, então: nessas diferenças, ontológicas e políticas, há um encontro possível?

DOI: https://doi.org/10.36253/rifp-2016

Read Full Text: https://riviste.fupress.net/index.php/rifp/article/view/2016

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