A fábrica do selvagem e o choque das imaginações. Uma leitura pós-etnográfica da obra de Denilson Baniwa

From Firenze University Press Journal: Quaderni Culturali IILA

University of Florence
4 min readMay 26

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Eduardo Jorge de Oliveira, Instituto Max Planck, Roma Universidade de Zurique, UZH

A FÁBRICA DO SELVAGEM: HISTÓRIA DA IMAGINAÇÃO NO OCIDENTE

As duas primeiras décadas dos anos dois mil encerraram a utopia do espírito globalizado, a saber, aquela dos corpos que circulam livremente sem fronteiras em um mundo baseado no discurso da diversidade cultural. O trânsito livre não é para todos e se restringe cada vez mais. Viajar, assim, torna-se cada vez mais um exercício de nostal-gia. Por um lado, trata-se de um modelo que se esgotou porque parte desses desejos de circulação foi suprida pelas redes telemáticas. No que diz respeito à circula-ção mundial de mercadorias e de desejos atrelados a elas, as telas dos computadores e de outros dispositivos acionam uma infraestrutura capaz de mantê-las per-manentemente em trânsito. Por outro lado, a circulação coordenada dos corpos e das mercadorias encontrou um limite a partir da pandemia do Coronavírus no final de 2019, o que alterou a mobilidade das pessoas, dando início a um marco posterior à globalização, pois as mercadorias continuaram a circular, se não de modo intensivo, pelo menos, disjuntivo e coordenado com centrais de distribuição. Esse ciclo histórico da globalização expõe diversos imaginários transculturais sobrepostos às práticas colo-niais e pós-coloniais de modo que a tensão entre merca-dorias e meio-ambiente se encontra em um novo estágio que pode ser medido no campo das imagens.

Joaquín Barriendos postulou a existência de tais imaginários a partir de um consumo global da diversidade cultu-ral (2011, p. 14). Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010 e 2022) assinalaram que a circulação do “povo da merca-doria” desponta para uma estrutura narrativa dos povos ianomâmi, cujo mito mais pertinente é o da queda do céu. A queda do céu é resultado de um relato xamâni-co segundo o qual o céu só se sustenta no alto porque os xamãs estão em um vivo diálogo com os espíritos. Se o último xamã desaparecer, o céu cairá sobre a terra (Albert e Kopenawa, 2010). No relato mais recente repro-duzido em Yanomami, l’esprit de la forêt, o xamã iano-mami afirma que seus ancestrais preferiam as palavras dos cantos dos espíritos a todas as outras formas de pen-samento (2022, p. 137). Ainda nas suas palavras, é graças às narrativas ecológicas que surgem nas cidades que o discurso xamânico sobre a floresta pode finalmente ser escutado (2022, p. 15).

Assim, as teorias e os modos de observar o meio-ambiente nos centros urbanos contri-buem para a criação de uma escuta de relatos e formas de conhecimento milenares dos povos indígenas. Mas isso não é suficiente. É a partir desse quadro que se apresenta a seguin-te hipótese: a ilusão de uma diversidade cultural fez com que a ideia de “mundo natural” — suas figurações e representações — chegasse ao seu termo, pelo menos sua ideia construída a partir de uma iconografia advinda de uma fábrica colonial da visão, ainda em vigor com as práticas extrativistas e com a circulação de mercadorias. Nesse marco, cientistas e artistas viajantes inserem-se na proto-história da globalização. Eles tornaram-se — dire-ta ou indiretamente — agentes de produção da cultura visual do mundo natural que circulou e circula na Euro-pa, seja sob a estética, seja sob a episteme. As primeiras representações do mundo natural geralmente feitas a partir do novo mundo documentam a fábrica do imaginário do mundo ocidental.

India Occidentalis e Historia Americae sive Novi Orbis, Théodore de Bry, é um exemplo, de imagens que foram produzidas no século XVI e que ainda permanecem em circulação, isto é, produzindo significados que ora alimentam ora reforçam o imaginário exótico e selvagem do novo mundo. Esse é apenas um dos resultados de grandes viagens feitas entre 1590 e 1634 e que foram incorporados a patrimônios nacionais de museus e de arquivos nos mais diversos países europeus. A partir desse exemplo, dois regimes de temporalidade do olhar formam-se. O primeiro deles é histórico e o segundo é antropológico e, na dinâmica das imagens, ambos com-plementam-se. O primeiro deles forma-se ao longo da fabricação do imaginário ocidental. A partir da Améri-ca, diversas figurações encontraram uma linha de coe-rência para solidificar um imaginário do mundo natural sob o prisma do exótico e do selvagem. O desenvol-vimento dessa gramática visual da visão tornou-se útil para os poderes institucionais.

Cada nação fez um uso específico das descobertas que podem ser brevemente resumidas como descobertas da própria arte de figurar e representar o outro, neste caso, o selvagem, que surge como uma outra categoria para além dos antigos e dos modernos (Hartog, 2005). A partir de François Hartog, pode-se compreender que a relação com a natureza se modifica, uma vez que a figura do selvagem altera a que-rela a qual pertenciam os antigos e modernos.

DOI: https://doi.org/10.36253/qciila-2061

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