O Corpo que menstrua: contravisualidades no humor gráfico produzido por Fabiane Langona (2014–2021)

From Firenze University Press Journal: Quaderni Culturali IILA

University of Florence
3 min readDec 31, 2024

Maria da Conceição Francisca Pires, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Em 07 de Outubro de 2021, foi sancionada a lei 14.214/21 que instituiu no Brasil o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual e combate a precariedade menstrual. Originalmente, a proposta apresentada continha 08 artigos, dos quais 05 foram vetados, de modo que, na prática, a lei se transformou em ape-nas uma campanha informativa sobre o tema da saúde menstrual. Estima-se que cerca de 5,6 milhões de corpos que menstruam seriam beneficiados pela lei, incluindo homens trans e pessoas não binárias, em diferentes condições sociais e econômicas. O embargo presidencial fez emergir entre quadrinistas feministas brasileiras um debate importante, mas ainda pouco visibilizado: a questão da pobreza menstrual e o seu impacto sobre a vida de milhões de corpos que menstruam. As redes sociais foram tomadas por mensagens de discordância à decisão presidencial e, como parte de meu campo de estudo, chamoume a atenção as publicações de ilustradoras, quadrinistas e cartunistas tanto sobre o veto e a pobreza menstrual, quanto, sobre os pre-conceitos relacionados ao tema. Ressalto as publicações das cartunistas Iaanks, Fabiane Langona e Thais Trindade em seus perfis no Instagram, em 07 de outubro de 2021, e, em 09 de outubro, as das cartunistas Carol Cospe Fogo, Aline Corteletti e Poliana Paiva. Nesse artigo, interessa-me discutir como o humor gráfico foi empregado como linguagem para discutir e tornar visível o próprio sangue menstrual e o menstruar, ambos rejeitados e inviabilizados nas sociedades em que o predominam as relações de dominação material e simbólica de homens sobre as mulheres e sobre todos os corpos que não são considerados pertencentes aos padrões normativos de raça, gênero e orientação sexual (Delphy, 2009). Especificamente, irei me debruçar sobre os cartuns e webtiras produzidos pela cartunista gaúcha Fabiane Langona, cuja produção gráfica se sobressai pela adoção da ironia, do estilo grotesco (Bakhtin, 1993) e pelo prisma crítico adotado. A partir das análises anteriores que realizei sobre a obra de Fabiane Langona, constato o seu profundo inte-resse profundo pelo cotidiano, por tudo aquilo que é ordinário, e uma imersão em seu tempo, nas fraturas e indeterminações desse tempo (Pires, 2019a, 2019b). Em suas histórias, as personagens encenam situações corri-queiras, aparentemente banais, que destronam os este-reótipos comuns atribuídos às mulheres e que servem de mote para pautar macro e micro violências cotidianas contra as mulheres, assim como para sublinhar as redes discursivas que, no intuito de nos disciplinar, operam em múltiplos campos: médicos, científicos, econômicos, jurídicos e religiosos, propagando e fixando identidades, papéis sociais e normas binárias.A autora protagoniza grande parte de suas histórias através de autorretratos em que se representa em um corpo feminino sem artifícios estéticos e despadroni-zado e, por isso mesmo, autônomo e livre, cujos gestos, ações e práticas assumem uma postura avessa às ima-gens estereotipadas das mulheres e das relações de gêne-ro. Os seus autorretratos, entretanto, não constituem uma autobiografia, mas mostram-se um recurso origi-nal para questionar a existência de uma arte feminina ou de mulheres, abordar de forma renovada uma agenda diversificada de temas como maternidade, interrupção voluntária da gravidez, as formas de violência patriarcal, racismo, desigualdade de classe, assédio, sexualidade, dentre vários, e, também, apresentar uma compreensão autocentrada de si (Giunta, 2018). Para essa análise, selecionei cartuns e webtiras que foram divulgados entre 2014–2021 em seu perfil no Face-book e no Instagram, e que trazem a menstruação como foco central. Embora não tenha identificado uma lineari-dade ou uma tematização roteirizada sobre o mênstruo, algo como um conjunto de histórias sobre esse tema, a imagem de uma mulher menstruada frequentemente aparece em suas publicações, o que pode ser pensado como um esforço de falar abertamente sobre um fenômeno fisiológico que é tratado como um tabu. Interessa — me analisar como a adoção de um viés não depreciativo sobre esse tema fere esse código de silêncio e ojeriza instituídos e propagados e pode ser concebido como uma ruptura estética desse silêncio.

DOI: https://doi.org/10.36253/qciila-2473

Read Full Text: https://riviste.fupress.net/index.php/iila/article/view/2473

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